Eduardo Fagnani
Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) e coordenador da rede Plataforma Política Social.
(Versão ampliada de artigo publicado na Carta Capital, edição 978, 10/11/2017)
O marqueteiro de Donald Trump é um dos precursores da pós-verdade. Roger Stone trabalhou para quase todos os presidentes republicanos dos EUA desde o início dos anos de 1970. Entretanto, em 1960, com apenas oito, ele participou ativamente em favor do democrata John F. Kennedy na “campanha eleitoral” promovida pelos alunos da escola em que estudava. No documentário Get Me Roger Stone, ele conta que inventou uma mentira para influenciar os colegas nessa campanha. Divulgou que Richard Nixon, que disputava a presidência dos EUA com Kennedy, teria anunciado que as aulas seriam obrigatórias aos sábados. Kennedy saiu-se vitorioso no pleito escolar. Esse teria sido o seu “primeiro truque político”, e com essa manobra teria descoberto o “poder da desinformação”. No filme, já arremata com uma fake news: “nunca mais repeti isso”.
As grandes corporações da mídia brasileira sustentam que embustes ou falsas verdades seriam território exclusivo das “redes sociais”. Mas está claro que nas redações – seletivas, partidárias e ideológicas – dóceis ao “financismo” e ácidas ao “populismo” prevalece a doutrinação midiática em favor dos interesses dos donos da riqueza.
Com o propósito de criminalizar políticas redistributivas e partidos populares, é emblemático que a recente divulgação dos estudos sobre a desigualdade da renda no Brasil conduzidos pelo Word Wealth and Income Database,[1] utilizando-se da metodologia inovadora desenvolvida por Thomas Piketty e Emmanuel Saez[2] – que revela que a renda foi mantida concentrada no topo da pirâmide no período 2001 e 2015 – tenha sido aviltada e comemorada como a “queda de mais um mito” da era Lula. Alguns praticantes do poder da desinformação sublinharam que se trataria de “fraude que a esquerda engoliu”.
Essa manobra rasteira encoberta o fato rudimentar de que existem diferentes metodologias consagradas internacionalmente para mensuração da desigualdade de renda entre ricos e pobres. E que, obviamente, dependendo do método utilizado, os resultados diferem. O surgimento de um critério inovador, não joga na lata do lixo o método tradicional estabelecido em 1914 pelo economista e estatístico Corrado Gini. Apesar de suas limitações, o chamado “coeficiente de Gini” é o índice mais usual adotado globalmente por instituições e pesquisadores para investigar as disparidades da renda, sobretudo em virtude da maior abrangência da base na pirâmide (LODI, 2017). [3]
A principal limitação do coeficiente de Gini é que ele não capta a riqueza financeira do topo da pirâmide social. Dificilmente um entrevistado de alta renda vai enumerar para o pesquisador do IBGE os ganhos de capital aferidos com lucros, dividendos, renda de imóveis e aplicações financeiras, por exemplo. Porque utiliza o método tradicional de pesquisas domiciliares, o coeficiente de Gini expressa melhor a renda do trabalho.
Os estudos de Thomas Piketty e Emmanuel Saez revolucionaram esse método tradicional, porque também usam as bases de dados geradas pelas Declarações de Renda para efeito de tributação, mais eficaz para mensurar a riqueza.
No caso do Brasil, os estudos baseados nessa metodologia indicam a estabilização dos graus de desigualdade entre pobres e ricos entre 2001-2015. No período analisado, a fatia da renda nacional dos 10% mais ricos da população passou de 54,3% para 55,3%, enquanto a participação da renda dos 50% mais pobres passou de 11,3% para 12,3%. A renda nacional total cresceu 18,3%, mas 60,7% desses ganhos foram apropriados pelos 10% mais ricos, contra 17,6% das camadas menos favorecidas.
O estudo classificou a manutenção da desigualdade no Brasil como “chocante”, principalmente se comparada com outros países desenvolvidos. “É digno de nota que a renda média dos 90% mais pobres no Brasil é comparável à dos 20% mais pobres na França, o que apenas expressa a extensão da distorção na renda no Brasil e a falta de uma vasta classe média”, ressalta o levantamento. Em contrapartida, o 1% mais rico no Brasil ganha mais que o 1% mais rico no país europeu: US$ 541 mil aqui, contra US$ 450 mil a US$ 500 mil na França.[4]
É importante sublinhar essa metodologia ainda apresenta problemas no caso do Brasil em função das limitações das bases de dados da Receita Federal e pelas deficiências da série de dados, que impedem a comparação entre os períodos 2001-2015 e 1990-2000.
Desigualdade da renda do trabalho: o que mudou entre 1960 e 2015?
Por sua vez, a análise da evolução do coeficiente de Gini (renda do trabalho) entre 1960 e 2015 revela três momentos distintos: entre 1960 e 1980, a desigualdade aumenta de 0,54 para 0,59; entre 1980 e 2001, ela se estabiliza em torno de 0,59; e a partir de 2001, ela cai sistematicamente, atingindo 0,49 em 2015 – praticamente de volta ao patamar de 1960, meio século antes.
Assim, entre 2001 e 2015, ao contrário do período 1960-1980 o crescimento da economia foi acompanhado pela redução da desigualdade da renda do trabalho. O crescimento potencializou os efeitos redistributivos do Estado Social construído em 1988 e das novas políticas sociais implantadas posteriormente. O avanço da democracia permitiu que a pressão dos setores subalternos tivesse repercussão nos rumos das políticas de governo e nas pautas de negociação sindical e trabalhista. A mobilidade social voltou a ser ascendente após duas décadas de estancamento. A renda das famílias cresceu especialmente nos extratos inferiores, reduzindo a disparidade e gerando um mercado interno de consumo de massas que se constituiu num dos vetores do crescimento econômico.
O que explica a queda da desigualdade da renda do trabalho?
Os fatores determinantes para a redução da desigualdade da renda do trabalho foram o crescimento da economia e a melhor conjugação entre objetivos econômicos e sociais, num contexto internacional favorável. Após mais de duas décadas, o crescimento voltou a ter algum espaço na agenda macroeconômica.
O crescimento do PIB per capita foi determinante para que ocorresse menor concentração dos ganhos do trabalho. A renda domiciliar per capita, após ficar estagnada por dez anos, elevou-se a partir de meados de 2000. O acréscimo foi mais expressivo nos decis mais pobres (do 1º ao 6º) relativamente aos mais ricos (do 7º ao 10º).
O crescimento econômico também teve reflexos positivos nos seguintes núcleos da proteção social: ampliação do gasto social; geração de empregos formais; queda do desemprego e da informalidade; valorização do valor real do salário mínimo; potencialização dos efeitos redistributivos da Seguridade Social; e, combate à pobreza extrema.[5]
Todos esses vetores contribuíram para a queda do coeficiente de Gini. Estudo do IPEA (2013)[6] revela que o mercado de trabalho (geração de empregos e elevação da renda do trabalho) foi fator determinante para o crescimento da renda domiciliar per capita (respondeu por 71% da elevação), seguido pelas transferências de renda da Previdência (contribuição de 23%) e pelas transferências de renda do programa Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (contribuição de 4%).
Inclusão Social sem Reformas Estruturais
No período em análise a economia cresceu e distribuiu renda entre assalariados, fato inédito nos últimos cinquenta anos. Entretanto, a inclusão social não veio acompanhada por mudanças estruturais necessárias para manter e aprofundar esses progressos, como a Reforma Tributária, por exemplo.
Assim, nesse caso, a crítica honesta a fazer aos governos petistas é a rapidez com que abandonaram o projeto de Reforma Tributária voltado para a justiça social e fiscal, presente no programa do partido até 2002. Abandonado aquele projeto, os esforços no vetor do gasto público foram limitados pela manutenção do caráter regressivo dos tributos.
Projeto de país e desigualdade
Um dos núcleos de qualquer projeto progressista de país para o Brasil tem de ser a decisão de enfrentar as diversas faces da desigualdade social, que vão muito além das desigualdades da renda.
Os progressos recentes não apagaram as marcas profundas da crônica desigualdade social brasileira, que tem raízes históricas herdadas do passado escravocrata, do caráter específico do capitalismo tardio, da curta experiência democrática do século 20 e do acelerado processo de urbanização, na ausência da reforma agrária e de políticas urbanas e sociais.
O Brasil ainda não enfrentou as desigualdades históricas do Século XIX e teve um curto ciclo de tentativa de minorar as desigualdades do Século XX. A concentração da renda recuou aos padrões de 1960, mas permanece entre as mais elevadas do mundo. A concentração da riqueza rural e urbana é elevada; o sistema tributário isenta os ricos de pagar impostos; e a estrutura do mercado de trabalho guarda traços de economias subdesenvolvidas ou periféricas.
As desigualdades também estão presentes no acesso aos bens e serviços sociais básicos entre classes sociais e regiões, e o Brasil nunca contou com políticas nacionais de habitação popular, saneamento e mobilidade urbana que fossem portadoras de recursos financeiros e institucionais compatíveis com os problemas gerados pelo acelerado processo de urbanização ocorrido a partir de meados do século 20.
Além desses “velhos problemas” dos séculos passados, a dinâmica demográfica pressionará o Estado, a sociedade e democracia para que também enfrentem novos desafios neste Século XXI.
A criação de uma sociedade mais igualitária requer gestão macroeconômica que crie um ambiente favorável para esse objetivo de longo prazo, e não existem perspectivas favoráveis para que se construa sociedade mais igualitária, se este projeto não for pensado na perspectiva da democracia e do reforço do papel do Estado.
Entretanto, o período 2016-18 poderá concretizar a destruição dos principais instrumentos e mecanismos necessários para o desenvolvimento. A radicalização do projeto liberal tem por propósito restabelecer o “tripé” macroeconômico ortodoxo, levar ao extremo a reforma do Estado iniciada nos anos de 1990, o que implica, entre outros fatores, destruir o Estado Social inaugurado em 1988 e implantar o Estado Mínimo Liberal. No campo dos direitos sindicais e trabalhistas, os retrocessos colocam o país no estágio alcançado na década de 1930. Num país de longo passado escravagista, argumenta-se que “as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento”.
Em suma, é fraude aviltar a importância do coeficiente de Gini para, desse aviltamento tentar deduzir que a queda da desigualdade da renda no Brasil no período recente seria “uma lenda” própria do “populismo”. A bem-vinda metodologia introduzida pelo autor de “O capitalismo no Século XXI” não autoriza que se jogue na lata do lixo o critério tradicional de aferição utilizado desde 1914 pela maioria dos países. São métodos diferentes que, obviamente, apresentam resultados distintos, em função de distintas limitações e virtudes. Mas, ambos são válidos para se aferir e compreender o fenômeno investigado.
[1] http://wid.world/wid-world/
[2] PIKETTY, Thomas; SAEZ, Emmanuel. (2003) “Income inequality in the United States 1913–1998”. In:Quarterly Journal of Economics 118 (1), p. 1–41.
[3] LODI, RICARDO (2017). Basta reduzir a pobreza para combater a desigualdade social? São Paulo, Justificando/Carta Capital, outubro de 2017.
[4] http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-09/desigualdade-de-renda-no-brasil-nao-caiu-entre-2001-e-2015-revela-estudo
[5] CALIXTRE e FAGNANI (2017). A política social e os limites do experimento desenvolvimentista (2003-2014). IE/UNICAMP, Texto para Discussão 295. http://www.eco.unicamp.br/docprod/downarq.php?id=3524&tp=a
[6] IPEA (2013) Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela PNAD-IBGE. Comunicado n. 159. 2013.